Nós vemos no 24º capítulo
de I Samuel, que Saul pensava que Davi não poderia escapar de modo algum de sua
mão em En-Gedi, mas a providência de Deus fez com que ocorresse exatamente o
oposto disto, pois foi ele quem veio a ficar à mercê das mãos de Davi, porque
entrou sozinho numa caverna com o propósito de aliviar o ventre, e era
justamente naquela caverna que Davi estava escondido com seus homens.
Mas Davi poupou a sua
vida e apenas cortou a orla da veste de Saul, para lhe provar que tivera a sua
vida ao alcance da sua mão e no entanto, não aproveitou a ocasião para matá-lo,
pois sabia que isto não era para ser decidido por ele, senão pelo próprio Deus,
que havia ungido a Saul como rei.
Davi teve discernimento
suficiente para perceber que a profecia que lhe foi dirigida quanto ao fato de
que Saul seria entregue em suas mãos para matá-lo, era uma profecia falsa, pois
eis o teor das palavras que lhe foram ditas pelos seus homens na ocasião:
“Eis aqui o dia do qual o
Senhor te disse: Eis que entrego o teu inimigo nas tuas mãos; far-lhe-ás como
parecer bem aos teus olhos.” (v. 4).
Era uma profecia falsa
porque Deus nunca agirá contra a verdade revelada na Sua Palavra.
Na Lei de Moisés está
dito que nenhum israelita deveria agir contra o príncipe do seu povo. Ainda que
se alguém viesse a fazê-lo, certamente não o estaria fazendo com a aprovação do
Senhor, e também não seria isentado do seu juízo.
Foi por conhecer tal lei,
que Paulo temeu quando disse ao sumo-sacerdote Ananias que Deus o feriria, e se
desculpou por suas palavras, ainda que o sumo-sacerdote estivesse agindo de
modo injusto mandando que batessem na boca do apóstolo (At 23.3-5), e as
palavras que ele citou na ocasião para se justificar foi a sua ignorância de
que ele era sumo-sacerdote, e citou a referida lei de Moisés que proibia
qualquer ato desrespeitoso contra aqueles que fossem investidos por Ele em
posição de autoridade: “Aos juízes não maldirás, nem amaldiçoarás ao governador
do teu povo.” (Êx 22.28).
Assim, além do
conhecimento que Davi tinha da Lei do Senhor, ele era um homem dirigido pelo
Espírito Santo, e foi por esta intimidade com o Senhor e o conhecimento da Sua
Palavra que ele pôde sentir o seu coração doer quando cortou o manto de Saul, quanto
mais não sentiria a desaprovação de Deus se o matasse?
Para não errarmos nas
coisas relativas a Deus é necessário tanto conhecer as Escrituras quanto o Seu
poder.
Se a Lei de Moisés
proibia o falar mal e o amaldiçoar o príncipe, quanto mais tirar-lhe a vida.
Este respeito exigido em
relação às autoridades não foi mudado na dispensação da graça, conforme podemos
ver nas palavras dos apóstolos Pedro (I Pe 2.13, 17,.18) e Paulo (Rm 13.1).
Acrescente-se a isto que
caso Davi matasse Saul, em vez de ser conhecido como o rei heróico de Israel,
que havia livrado seu povo várias vezes dos seus inimigos, Davi seria
reconhecido como o rei traidor que matara o seu próprio soberano.
Então ele agiu debaixo da
direção de Deus e sabiamente, quando disse a Saul as palavras dos versos 9 a
15, nas quais deixou bem claro, depois de ter prestado a devida reverência a
Saul por ser o rei, que estava deixando o caso inteiramente nas mãos do Senhor,
para que Ele julgasse entre Saul e ele, e que Ele o vingasse de todo o mal que
estava recebendo de Saul, pois não seria a sua própria mão que seria contra o
rei, e citou o provérbio dos antigos de que dos ímpios é que procede a
impiedade, provavelmente insinuando que não ele, mas Saul estava agindo de modo
ímpio porque não era um homem piedoso, mas tal jamais se veria nele, que
perseguisse ou matasse a alguém por motivos ímpios, porque ele, Davi, era um
homem piedoso, e a perseguição feroz e incansável que Saul empreendia contra
ele tinha ainda o agravante de estar sendo feita contra alguém que não estava
procurando fazer-lhe mal, e por isso Davi se comparou a um cão morto, e a uma
pulga, pois que dano mortal ambos podem fazer a um homem?
E, deste modo, ele estava
entregando a sua causa ao Senhor, para que
fosse o seu juiz e advogado, de modo a livrá-lo da mão de Saul (v.
12-15).
O espírito imundo não
estava atuando sobre Saul naquela hora e ele foi convencido naquele momento,
que de fato estava pagando todo o bem que Davi lhe fizera com o mal, e então levantando a sua voz ele chorou
e o chamando de meu filho declarou que Davi era mais justo do que ele, porque
lhe havia recompensado com o bem, e ele lhe havia recompensado com o mal (v.
16,17), pois havia mostrado que era inocente perante ele e havia procedido bem,
porque havendo Deus lhe entregado nas mãos de Davi ele não o matara (v. 18).
Saul reconhece que é agir
contra a própria natureza terrena encontrar o inimigo e deixá-lo ir em paz,
quando se poderia de algum modo prejudicá-lo (v. 19).
Então declarou que
esperava que Deus pagasse a Davi pelo
bem que lhe havia feito naquele dia, e que estava convicto, que de fato Davi
haveria de reinar e que o reino de Israel haveria de ser firmar na sua mão (v.
19,20).
E para confirmar que era
real esta certeza ele pediu a Davi que jurasse pelo Senhor, que não
desarraigaria a sua descendência quando viesse a reinar e nem extinguiria o
nome dele da casa de seu pai, não matando a todos os seus descendentes (v. 20,
21).
E Davi lhe jurou que o
atenderia no que ele estava lhe pedindo (v. 21).
Deste modo, nós
aprendemos deste capitulo, que o temor e o respeito devido àqueles que estão em
posição de autoridade sobre nós, não significa que devemos silenciar diante das
injustiças que estejam praticando.
Subserviência não é a
submissão bíblica esperada por Deus de seus servos.
A submissão bíblica
implica a presença da virtude da humildade, da moderação, mas não da covardia e
da falta de ousadia, pois nos é dito pelo apóstolo que o espírito que temos
recebido de Deus não é de covardia, mas de poder, de amor e de moderação (II
Tim 1.7).
Podemos aprender muito do
exemplo prático de Davi, que não agiu contra Saul, por motivo de covardia, e
nem de falta de poder, mas porque era movido pelo amor de Deus, e pela
moderação dos que são dirigidos pelo Espírito Santo.
A palavra para moderação
no original grego é sofronismós, que significa prudência, disciplina própria,
domínio próprio, prudência, moderação.
Nós vemos em Davi este
equilíbrio entre coragem e domínio próprio ou moderação.
É isto que deve existir
em todo verdadeiro cristão, para que não deixem de dar honra a quem é devido
honra, mas que não deixem reprovar o mau comportamento destes a quem deve
honra, por motivo de covardia.
Nós estamos fazendo este
comentário para que se evite a todo custo uma falsa interpretação do que é
autoridade espiritual e como se deve agir diante daqueles que estão investidos
pelo próprio Deus de autoridade sobre nós, como era o caso de Saul em relação a
Davi, porque ele estava reinando porque fora ungido por ordem de Deus para tal,
e portanto, cabia ao próprio Deus e a nenhum homem de Israel decidir sobre a
questão se Saul deveria ou não continuar reinando.
É comum que aqueles que
estão investidos de autoridade façam uso do artifício da intimidação, de modo
que os que estão debaixo do seu governo se sintam temerosos de emitir qualquer
opinião contrária à deles, por um falso convencimento de que o ato de fazê-lo
ainda que por amor à verdade e à justiça seria estar agindo contra Deus, que os
colocou na posição de autoridade, em que eles se encontram.
Cada servo do Senhor deve
manifestar a sua própria personalidade e firmeza para a glória de Deus, porque
foram criados para tal propósito.
Eles não devem anular as
próprias vontades e torcer até mesmo o direito para se colocarem debaixo da
dependência total de outros homens, a pretexto do dever da obediência devida
àqueles que os lideram.
Isto não tem nada a ver
com a verdadeira obediência ou submissão, pois dependência demais não é bom,
tanto quanto a independência também não o é.
Por isso a Bíblia fala em
moderação, que significa evitar excessos, comportamentos extremos.
Se Davi se anulasse
perante Saul a pretexto de uma obediência absoluta, ele não viria jamais a ser
rei em Israel, e até mesmo poderia ser morto por ele.
Mas ele tinha
personalidade o bastante para seguir a vontade de Deus, e não a mera vontade
dos homens. E se o fizesse ele não estaria de modo nenhum agradando ao Senhor,
que foi quem na verdade lhe havia ungido para ser o novo rei de Israel.
Assim, uma verdadeira
atitude de rebeldia, de confrontação indevida da autoridade sempre deve ser
medida pela identificação de um espírito atrevido e não moderado, de um
espírito de desamor e não de amor.
Mas não se pode falar em
rebeldia onde a virtude, o respeito e o amor prevalecem.
Não se pode falar de
deslealdade onde se age em estrita obediência à vontade de Deus.
Deste modo, tal como
Davi, devemos sempre pedir que seja o Senhor mesmo o juiz entre nós e aqueles
que nos acusam de rebeldia, ou de qualquer outra falta que tenhamos convicção
de que não esteja em nós, tal como fazia
o apóstolo Paulo:
“1 Que os homens nos
considerem, pois, como ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de
Deus.
2 Ora, além disso, o que
se requer nos despenseiros é que cada um seja encontrado fiel.
3 Todavia, a mim mui
pouco se me dá de ser julgado por vós, ou por qualquer tribunal humano; nem eu
tampouco a mim mesmo me julgo.
4 Porque, embora em nada
me sinta culpado, nem por isso sou justificado; pois quem me julga é o Senhor.
5 Portanto nada julgueis
antes do tempo, até que venha o Senhor, o qual não só trará à luz as coisas
ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações; e então
cada um receberá de Deus o seu louvor.” (I Cor 4.1-4).
“Pois busco eu agora o
favor dos homens, ou o favor de Deus? ou procuro agradar aos homens? se
estivesse ainda agradando aos homens, não seria servo de Cristo.” (Gál 1.10).
“1 Ora, quando Saul
voltou de perseguir os filisteus, foi-lhe dito: Eis que Davi está no deserto de
En-Gedi.
2 Então tomou Saul três
mil homens, escolhidos dentre todo o Israel, e foi em busca de Davi e dos seus
homens, até sobre as penhas das cabras montesas.
3 E chegou no caminho a
uns currais de ovelhas, onde havia uma caverna; e Saul entrou nela para aliviar
o ventre. Ora Davi e os seus homens estavam sentados na parte interior da
caverna.
4 Então os homens de Davi
lhe disseram: Eis aqui o dia do qual o Senhor te disse: Eis que entrego o teu
inimigo nas tuas mãos; far-lhe-ás como parecer bem aos teus olhos. Então Davi
se levantou, e de mansinho cortou a orla do manto de Saul.
5 Sucedeu, porém, que
depois doeu o coração de Davi, por ter cortado a orla do manto de Saul.
6 E disse aos seus
homens: O Senhor me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, ao ungido do
Senhor, que eu estenda a minha mão contra ele, pois é o ungido do Senhor.
7 Com essas palavras Davi
conteve os seus homens, e não lhes permitiu que se levantassem contra Saul. E
Saul se levantou da caverna, e prosseguiu o seu caminho.
8 Depois também Davi se
levantou e, saindo da caverna, gritou por detrás de Saul, dizendo: Ó rei, meu
senhor! Quando Saul olhou para trás, Davi se inclinou com o rosto em terra e
lhe fez reverência.
9 Então disse Davi a
Saul: por que dás ouvidos às palavras dos homens que dizem: Davi procura
fazer-te mal?
10 Eis que os teus olhos
acabam de ver que o Senhor hoje te pôs em minhas mãos nesta caverna; e alguns
disseram que eu te matasse, porém a minha mão te poupou; pois eu disse: Não
estenderei a minha mão contra o meu senhor, porque é o ungido do Senhor.
11 Olha, meu pai, vê aqui
a orla do teu manto na minha mão, pois cortando-te eu a orla do manto, não te
matei. Considera e vê que não há na minha mão nem mal nem transgressão alguma,
e que não pequei contra ti, ainda que tu andes à caça da minha vida para ma
tirares.
12 Julgue o Senhor entre
mim e ti, e vingue-me o Senhor de ti; a minha mão, porém, não será contra ti.
13 Como diz o provérbio
dos antigos: Dos ímpios procede a impiedade. A minha mão, porém, não será
contra ti.
14 Após quem saiu o rei
de Israel? a quem persegues tu? A um cão morto, a uma pulga?
15 Seja, pois, o Senhor
juiz, e julgue entre mim e ti; e veja, e advogue a minha causa, e me livre da
tua mão.
16 Acabando Davi de falar
a Saul todas estas palavras, perguntou Saul: E esta a tua voz, meu filho Davi?
Então Saul levantou a voz e chorou.
17 E disse a Davi: Tu és
mais justo do que eu, pois me recompensaste com bem, e eu te recompensei com
mal.
18 E tu mostraste hoje
que procedeste bem para comigo, por isso que, havendo-me o Senhor entregado na
tua mão, não me mataste.
19 Pois, quem há que,
encontrando o seu inimigo, o deixará ir o seu caminho? O Senhor, pois, te pague
com bem, pelo que hoje me fizeste.
20 Agora, pois, sei que
certamente hás de reinar, e que o reino de Israel há de se firmar na tua mão.
21 Portanto jura-me pelo
Senhor que não desarraigarás a minha descendência depois de mim, nem
extinguirás o meu nome da casa de meu pai.
22 Então jurou Davi a
Saul. E foi Saul para sua casa, mas Davi e os seus homens subiram ao lugar
forte.” (I Sm 24.1-22)
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