Nós temos neste 20º capítulo
de I Samuel, um diálogo de dois homens honrados: Davi e Jônatas.
Este último mesmo sendo
incitado pelo seu pai contra Davi, sob o argumento que caso o deixasse viver,
ele tomaria a coroa que lhe pertencia por direito hereditário, não se deixou
mover por este espírito incitador e manteve a sua dignidade muito acima destas
águas turvas e lodosas do coração de seu pai.
Ele não o fez
simplesmente porque tinha firmado uma aliança com Davi no dia em que ele matou
Golias, mas sobretudo porque o amava com um amor santo e verdadeiro.
Era sem dúvida o amor
ágape de Deus que o movia, porque o amor que procede do Senhor não busca o que
é do seu próprio interesse, e não é invejoso ou ciumento, e tudo suporta e
sofre, e deste modo, as palavras de Saul não fizeram qualquer eco na alma de
Jônatas.
Como o amor não folga com
a injustiça, senão com a verdade, jamais se colocaria ao lado da causa injusta
e pecaminosa de seu pai, e ficaria firme na defesa da justiça e da verdade que
estavam em Davi, pois sabia que ele não havia cometido nenhum pecado contra o
rei, e muito pelo contrário, somente lhe tinha feito o bem, tanto pessoalmente,
quanto nos assuntos relativos ao reino.
Assim, eles renovaram a
aliança que haviam feito, e Jônatas sabendo que Davi viria certamente a ser o
futuro rei de Israel, se submeteu humildemente à decisão de Deus relativa ao
caso, e somente pediu a Davi que usasse de benevolência para com ele e para com
os seus descendentes (v. 14-16), pois ele agora tinha a convicção de que
realmente seu pai intentava o mal contra ele, coisa que Saul vinha escondendo
de Jônatas até aquele momento, porque sabia que ele amava a Davi como à sua
própria alma.
Davi foi digno o
suficiente para ocultar de Jônatas as agressões que vinha sofrendo da parte de
Saul, para não colocar um filho contra seu pai.
Ele somente agora lhe
declararia o fato, porque Saul estava deliberadamente procurando matá-lo.
Deus fez de Jônatas para
Davi um irmão na hora da adversidade (Pv 17.17).
Para revelar a Jônatas as
verdadeiras intenções de seu pai, em relação a ele, Davi usou de um
estratagema, pois faltou deliberadamente ao banquete que seria oferecido
durante os dois dias em que Saul jantaria publicamente, por ocasião das
solenidades da lua nova, quando eram oferecidos sacrifícios adicionais, e pediu
que Jônatas dissesse a seu pai, caso perguntasse por ele, que teve que se
dirigir à casa de Jessé, seu pai, em Belém, e ao ouvir tais palavras Saul muito
se encolerizaria, pois devia ter planejado capturá-lo, enquanto se procedia à
solenidade.
Saul muito se enfureceu
contra Jônatas, quando ele tentou justificar a ausência de Davi, a ponto de
ameaçá-lo de morte, pois sabia que estava lhe protegendo.
Eles haviam combinado um
sinal para que Davi soubesse se Saul havia sido favorável ou não a ele, pois
Jônatas lançaria suas flechas na direção em que Davi deveria se encontrar no
dia aprazado, e caso dissesse ao moço que iria apanhar as flechas, que elas
estavam para além do lugar em que ele se encontrava, era para que Davi soubesse
que deveria fugir, porque Saul determinara matá-lo, e em caso contrário, se
dissesse que as flechas estavam aquém do moço, seria porque Saul havia se
mostrado favorável a ele.
E tendo uma vez feito o
sinal combinado Davi não se expôs senão com o devido cuidado para que a sua
presença não fosse denunciada, e assim pudesse se despedir de Jônatas, porque
dali para a frente ele seria um fugitivo permanente de Saul.
Davi e Jônatas em sua
despedida se beijaram mutuamente com ósculo santo e choraram, e o texto destaca
que Davi chorou muito mais do que ele (v. 41).
Jônatas voltaria para a
segurança de sua casa, mas Davi teria que viver dali em diante despojado de
tudo quanto possuía, e a ter que viver como um fugitivo sobre a terra.
O sofrer esta grande
injustiça e ingratidão de Saul estava sendo uma luta muito maior para ele do
que a que havia travado com o gigante Golias.
Há gigantes espirituais e
emocionais que são duros de serem vencidos, e com isto nós podemos entender o
profundo clamor que encontramos nos Salmos de Davi, pedindo a Deus por justiça
e que o consolasse dos muitos inimigos que perseguiam a sua alma justa,
procurando destruí-la por causa do Seu grande amor pelo Senhor, demonstrado em
sua vida piedosa e santa.
“1 Então fugiu Davi de
Naiote, em Ramá, veio ter com Jônatas e lhe disse: Que fiz eu? qual é a minha
iniquidade? e qual é o meu pecado diante de teu pai, para que procure tirar-me
a vida?
2 E ele lhe disse: Longe
disso! não hás de morrer. Meu pai não faz coisa alguma, nem grande nem pequena,
sem que primeiro ma participe; por que, pois, meu pai me encobriria este
negócio? Não é verdade.
3 Respondeu-lhe Davi, com
juramento: Teu pai bem sabe que achei graça aos teus olhos; pelo que disse: Não
saiba isto Jônatas, para que não se magoe. Mas, na verdade, como vive o Senhor,
e como vive a tua alma, há apenas um passo entre mim e a morte.
4 Disse Jônatas a Davi: O
que desejas tu que eu te faça?
5 Respondeu Davi a
Jônatas: Eis que amanhã é a lua nova, e eu deveria sentar-me com o rei para
comer; porém deixa-me ir, e esconder-me-ei no campo até a tarde do terceiro
dia.
6 Se teu pai notar a
minha ausência, dirás: Davi me pediu muito que o deixasse ir correndo a Belém,
sua cidade, porquanto se faz lá o sacrifício anual para toda a parentela.
7 Se ele disser: Está
bem; então teu servo tem paz; porém se ele muito se indignar, fica sabendo que
ele já está resolvido a praticar o mal.
8 Usa, pois, de
misericórdia para com o teu servo, porque o fizeste entrar contigo em aliança
do Senhor; se, porém, há culpa em mim, mata-me tu mesmo; por que me levarias a
teu pai?
9 Ao que respondeu
Jônatas: Longe de ti tal coisa! Se eu soubesse que meu pai estava resolvido a
trazer o mal sobre ti, não to descobriria eu?
10 Perguntou, pois, Davi
a Jônatas: Quem me fará saber, se por acaso teu pai te responder asperamente?
11 Então disse Jônatas a
Davi: Vem, e saiamos ao campo. E saíram ambos ao campo.
12 E disse Jônatas a
Davi: O Senhor, Deus de Israel, seja testemunha! Sondando eu a meu pai amanhã a
estas horas, ou depois de amanhã, se houver coisa favorável para Davi, eu não
enviarei a ti e não to farei saber?
13 O Senhor faça assim a
Jônatas, e outro tanto, se, querendo meu pai fazer-te mal, eu não te fizer saber,
e não te deixar partir, para ires em paz; e o Senhor seja contigo, assim como
foi com meu pai.
14 E não somente usarás
para comigo, enquanto viver, da benevolência do Senhor, para que não morra,
15 como também não
cortarás nunca da minha casa a tua benevolência, nem ainda quando o Senhor
tiver desarraigado da terra a cada um dos inimigos de Davi.
16 Assim fez Jônatas
aliança com a casa de Davi, dizendo: O Senhor se vingue dos inimigos de Davi.
17 Então Jônatas fez Davi
jurar de novo, porquanto o amava; porque o amava com todo o amor da sua alma.
18 Disse-lhe ainda
Jônatas: Amanhã é a lua nova, e notar-se-á a tua ausência, pois o teu lugar
estará vazio.
19 Ao terceiro dia
descerás apressadamente, e irás àquele lugar onde te escondeste no dia do
negócio, e te sentarás junto à pedra de Ezel.
20 E eu atirarei três
flechas para aquela banda, como se atirasse ao alvo.
21 Então mandarei o moço,
dizendo: Anda, busca as flechas. Se eu expressamente disser ao moço: Olha que
as flechas estão para cá de ti, apanha-as; então vem, porque, como vive o
Senhor, há paz para ti, e não há nada a temer.
22 Mas se eu disser ao
moço assim: Olha que as flechas estão para lá de ti; vai-te embora, porque o
Senhor te manda ir.
23 E quanto ao negócio de
que eu e tu falamos, o Senhor é testemunha entre mim e ti para sempre.
24 Escondeu-se, pois,
Davi no campo; e, sendo a lua nova, sentou-se o rei para comer.
25 E, sentando-se o rei,
como de costume, no seu assento junto à parede, Jônatas sentou-se defronte
dele, e Abner sentou-se ao lado de Saul; e o lugar de Davi ficou vazio.
26 Entretanto Saul não
disse nada naquele dia, pois dizia consigo: Aconteceu-lhe alguma coisa pela
qual não está limpo; certamente não está limpo.
27 Sucedeu também no dia
seguinte, o segundo da lua nova, que o lugar de Davi ficou vazio. Perguntou,
pois, Saul a Jônatas, seu filho: Por que o filho de Jessé não veio comer nem
ontem nem hoje?
28 Respondeu Jônatas a
Saul: Davi pediu-me encarecidamente licença para ir a Belém,
29 dizendo: Peço-te que
me deixes ir, porquanto a nossa parentela tem um sacrifício na cidade, e meu
irmão ordenou que eu fosse; se, pois, agora tenho achado graça aos teus olhos,
peço-te que me deixes ir, para ver a meus irmãos. Por isso não veio à mesa do
rei.
30 Então se acendeu a ira
de Saul contra Jônatas, e ele lhe disse: Filho da perversa e rebelde! Não sei
eu que tens escolhido ao filho de Jessé para vergonha tua, e para vergonha de
tua mãe?
31 Pois por todo o tempo
em que o filho de Jessé viver sobre a terra, nem tu estarás seguro, nem o teu
reino; pelo que envia agora, e traze-mo, porque ele há de morrer.
32 Ao que respondeu
Jônatas a Saul, seu pai, e lhe disse: Por que há de morrer? que fez ele?
33 Então Saul levantou a
lança, para o ferir; assim entendeu Jônatas que seu pai tinha determinado matar
a Davi.
34 Pelo que Jônatas, todo
encolerizado, se levantou da mesa, e no segundo dia do mês não comeu; pois se
magoava por causa de Davi, porque seu pai o tinha ultrajado.
35 Jônatas, pois, saiu ao
campo, pela manhã, ao tempo que tinha ajustado com Davi, levando consigo um
rapazinho.
36 Então disse ao moço:
Corre a buscar as flechas que eu atirar. Correu, pois, o moço; e Jônatas atirou
uma flecha, que fez passar além dele.
37 Quando o moço chegou
ao lugar onde estava a flecha que Jônatas atirara, gritou-lhe este, dizendo:
Não está porventura a flecha para lá de ti?
38 E tornou a gritar ao
moço: Apressa-te, anda, não te demores! E o servo de Jônatas apanhou as
flechas, e as trouxe a seu senhor.
39 O moço, porém, nada
percebeu; só Jônatas e Davi sabiam do negócio.
40 Então Jônatas deu as
suas armas ao moço, e lhe disse: Vai, leva-as à cidade.
41 Logo que o moço se
foi, levantou-se Davi da banda do sul, e lançou-se sobre o seu rosto em terra,
e inclinou-se três vezes; e beijaram-se um ao outro, e choraram ambos, mas Davi
chorou muito mais.
42 E disse Jônatas a
Davi: Vai-te em paz, porquanto nós temos jurado ambos em nome do Senhor,
dizendo: O Senhor seja entre mim e ti, e entre a minha descendência e a tua
descendência perpetuamente.
43 Então Davi se levantou
e partiu; e Jônatas entrou na cidade.” (I Sm 20.1-43)
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