O discurso legalista de Bildade não
foi capaz de demover Jó da ideia de pedir a Deus que o matasse.
Ao contrário deu ensejo a que Jó
respondesse no início do nono capítulo ao legalismo de Bildade com a graça de
Deus.
Bildade estava falando da justiça que
é operada pelo próprio homem, e que de modo nenhum pode justificá-lo perante
Deus. Bildade não sabia disto, mas Jó bem conhecia esta verdade, porque apesar
de se declarar justo, ele não o fazia confiado na sua justiça própria, e bem
sabia que esta justiça do próprio homem ainda o mantém condenável perante o
perfeitamente justo e santo Deus.
Jó reconhecia juntamente com Bildade
que é necessário que o homem se apresente justo diante de Deus, mas sabia ao
mesmo tempo que ninguém pode por si mesmo ser justo aos olhos de Deus (Jo
9.1,2).
Que argumentos pode o homem apresentar
a Deus, estando em debate com Ele, para comprovar que é justo?
Como pode a criatura contender com o
Criador de todas as coisas? O Deus que tudo vê e controla e que no entanto é
invisível? (v. 11)
Ele tem o direito de fazer o que
quiser com tudo o que criou, porque tudo lhe pertence, e quem poderia impedi-lo
de fazê-lo, ou questionar os seus motivos? (v. 12)
Antes, se iraria de todo com estes
contendedores que ousam questionar os Seus atos.
Jó, em sua humildade, sabia que não
teria palavras para discutir com Deus para ser livrado das coisas que estava
sofrendo, por poder convencer-Lhe da Sua própria justiça. Mesmo sendo justo,
nada poderia responder a Deus, senão somente pedir-lhe misericórdia, por ser o
Seu juiz. (v. 14,15)
Ainda que obtivesse uma resposta de
Deus ao seu clamor, não poderia contar que Ele aceitasse os seus argumentos
para convencer-Lhe da sua própria justiça (v. 16).
Sem que o fizesse, o que seria uma
grande afronta para o Juiz de toda a terra, já estava sofrendo da parte dEle
toda aquela grande aflição, então, tentar argumentar em termos de sua justiça
própria só faria agravar o seu caso.
Além disso, se ele se apresentasse em
juízo para ser julgado por Deus, quem teria poder para convocar o Senhor para
julgar o seu caso?
De modo que ainda que fosse possível
ser perfeitamente justo, pela justiça própria, a sua própria boca o condenaria
perante Deus, e ela declararia a sua perversidade.
Jó não tinha sua vida preciosa a seus
próprios olhos, não buscava honra para si mesmo, e ainda assim, em sua
inocência em relação a isto, estava sendo destruído por Deus, e então somente
poderia concluir que Ele destrói tanto o reto quanto o ímpio (v. 22).
Nem mesmo o seu sofrimento poderia
purificá-lo tornando-o justo perante Deus.
Então todo o trabalho, todo o esforço
no sentido de buscar ser julgado por Deus para ser inocentado, se revelaria no
final, um trabalho vão, porque Deus não o tomaria por inocente. Então o seu
livramento não seria baseado na sua inocência, porque ninguém é inocente
perante este Deus terrível e santo.
Ainda que se lavasse com a água pura
extraída da neve, e que limpasse suas mãos com sabão, Jó estava convicto que
Deus mesmo assim o submergiria no fosso.
Ele sabia que Deus não é homem, como
ele era, para que pudesse lhe falar de igual para igual em juízo.
E que não há ninguém que possa se
colocar como árbitro entre Deus e os homens.
Então, se buscar ser achado
justificado por Deus baseado em sua própria justiça, a causa do homem já se
encontra desde o início, perdida.
Para que pudesse falar com Deus, sem
temor, seria necessário que Deus tirasse primeiro a vara da disciplina que
havia colocado sobre ele, e que removesse o terror que havia trazido sobre ele.
Por isso Jó disse a seus amigos que a
única coisa que lhe restava como direito era poder dar livre curso à sua queixa
e falar da amargura da sua alma, porque estava cheio de tédio pela sua própria
vida (Jó 10.1). Ele esperava que ao menos com isso, achasse misericórdia diante
de Deus, movendo a Sua compaixão em favor dele.
E se devesse dizer algo a Deus,
somente lhe pediria que não o condenasse, e que lhe fizesse saber por que
estava contendendo com ele, porque afinal Deus e a Sua vontade era tudo para
ele.
Jó estava convicto da sua integridade
perante o Senhor, e sabia que Deus também sabia que ele não era ímpio (v. 7).
Então por que estava tendo prazer em oprimi-lo e em desprezá-lo, favorecendo o
desígnio dos ímpios que lhe estavam desprezando e zombando dele? (v. 3).
Afinal, Jó sabia que Deus não vê e não
avalia e julga conforme fazem os homens, de modo que não poderia deixar de ser
misericordioso para com as nossas faltas eventuais e que não temos prazer de
cometer por sabermos o quanto entristecem o Seu Espírito.
Jó reconhecia que ele, como todo
homem, era obra das mãos de Deus. Foi o Senhor que o tecera no ventre da sua
mãe e que colocara nele o espírito, conservando-o em Sua providência, para que
não se desfizesse como o corpo natural que torna ao pó na morte (v. 10 a 12).
Contudo, Deus guardou para Si o modo
como criou o homem, porque isto foi da Sua vontade. Mas revelou ao homem que o
criara para ser santo e responsável perante Ele, de maneira que nenhuma iniquidade
pode ser absolvida por causa da justiça perfeita de Deus.
Por isso Jesus teve que morrer na
cruz, porque Deus não pode absolver o culpado, senão perdoá-lo. Cristo sofreu a
condenação, de modo que não houve absolvição da culpa, mas pagamento da pena de
modo perfeito por Cristo na cruz.
De modo que o icrédulo não poderá
achar misericórdia no juízo, uma vez que não pode ser absolvido da culpa que
tem perante Deus, por que não tem depositado sua fé em Cristo, que foi o único
que carregou sobre Si a nossa culpa.
E o próprio justo, como tem sido
justificado pela graça que há em Cristo, e por ser ainda pecador enquanto
estiver neste mundo, não pode levantar a cabeça perante o Senhor por sua
própria justiça, porque está farto de ignomínia, e de contemplar a sua própria
miséria (v. 15).
Por isso, mesmo ao justo altivo que
andar na soberba, Deus o caçará como um leão feroz para abatê-lo em sua
exaltação.
Há miríades de testemunhas de Deus
(anjos) que podem no acusar perante Ele dos nossos pecados.
Jó não tinha a esperança e o consolo
do céu que nós temos, porque isto não havia ainda sido revelado por Deus, na
plenitude em que foi revelado a nós.
Ele pensava que o espírito, mesmo do
justo, iria depois da morte, para um lugar de escuridão e densas trevas,
juntamente com o seu corpo (v. 22).
Então, quando estava pedindo a Deus
que o matasse estava apenas querendo um pouco de alívio das suas presentes
condições, mas não para ir para um lugar de descanso e glória, porque
considerava que tão grande era a justiça e a santidade de Deus, que não lhe
seria permitido, como pecador, estar em Sua presença nas alturas do céu.
Havia portanto este deficiência de
conhecimento de muitas coisas relativas à pessoa de Deus que somente nos foram
clara e diretamente reveladas por meio de Cristo.
A teologia de Jó não poderia ser
perfeita, apesar de ser muito superior à dos seus amigos.
“1 Então Jó respondeu, dizendo:
2 Na verdade sei que assim é; mas como
pode o homem ser justo para com Deus?
3 Se alguém quisesse contender com
ele, não lhe poderia responder uma vez em mil.
4 Ele é sábio de coração e poderoso em
forças; quem se endureceu contra ele, e ficou seguro?
5 Ele é o que remove os montes, sem
que o saibam, e os transtorna no seu furor;
6 o que sacode a terra do seu lugar,
de modo que as suas colunas estremecem;
7 o que dá ordens ao sol, e ele não
nasce; o que sela as estrelas;
8 o que sozinho estende os céus, e
anda sobre as ondas do mar;
9 o que fez a ursa, o Oriom, e as
Plêiades, e as recâmaras do sul;
10 o que faz coisas grandes e
insondáveis, e maravilhas que não se podem contar.
11 Eis que ele passa junto a mim, e,
não o vejo; sim, vai passando adiante, mas não o percebo.
12 Eis que arrebata a presa; quem o
pode impedir? Quem lhe dirá: Que é o que fazes?
13 Deus não retirará a sua ira;
debaixo dele se curvaram os aliados de Raabe;
14 quanto menos lhe poderei eu
responder ou escolher as minhas palavras para discutir com ele?
15 Embora, eu seja justo, não lhe
posso responder; tenho de pedir misericórdia ao meu juiz.
16 Ainda que eu chamasse, e ele me
respondesse, não poderia crer que ele estivesse escutando a minha voz.
17 Pois ele me quebranta com uma
tempestade, e multiplica as minhas chagas sem causa.
18 Não me permite respirar, antes me
farta de amarguras.
19 Se fosse uma prova de força, eis-me
aqui, diria ele; e se fosse questão de juízo, quem o citaria para comparecer?
20 Ainda que eu fosse justo, a minha
própria boca me condenaria; ainda que eu fosse perfeito, então ela me declararia
perverso:
21 Eu sou inocente; não estimo a mim
mesmo; desprezo a minha vida.
22 Tudo é o mesmo, portanto digo: Ele
destrói o reto e o ímpio.
23 Quando o açoite mata de repente,
ele zomba da calamidade dos inocentes.
24 A terra está entregue nas mãos do
ímpio. Ele cobre o rosto dos juízes; se não é ele, quem é, logo?
25 Ora, os meus dias são mais velozes
do que um correio; fogem, e não veem o bem.
26 Eles passam como balsas de junco,
como águia que se lança sobre a presa.
27 Se eu disser: Eu me esquecerei da
minha queixa, mudarei o meu aspecto, e tomarei alento;
28 então tenho pavor de todas as
minhas dores; porque bem sei que não me terás por inocente.
29 Eu serei condenado; por que, pois,
trabalharei em vão?
30 Se eu me lavar com água de neve, e
limpar as minhas mãos com sabão,
31 mesmo assim me submergirás no
fosso, e as minhas próprias vestes me abominarão.
32 Porque ele não é homem, como eu,
para eu lhe responder, para nos encontrarmos em juízo.
33 Não há entre nós árbitro para pôr a
mão sobre nós ambos.
34 Tire ele a sua vara de cima de mim,
e não me amedronte o seu terror;
35 então falarei, e não o temerei;
pois eu não sou assim em mim mesmo.” (Jó 9)
“1 Tendo tédio à minha vida; darei
livre curso à minha queixa, falarei na amargura da minha alma:
2 Direi a Deus: Não me condenes;
faze-me saber por que contendes comigo.
3 Tens prazer em oprimir, em desprezar
a obra das tuas mãos e favorecer o desígnio dos ímpios?
4 Tens tu olhos de carne? Ou vês tu
como vê o homem?
5 São os teus dias como os dias do
homem? Ou são os teus anos como os anos de um homem,
6 para te informares da minha iniquidade,
e averiguares o meu pecado,
7 ainda que tu sabes que eu não sou
ímpio, e que não há ninguém que possa livrar-me da tua mão?
8 As tuas mãos me fizeram e me deram
forma; e te voltas agora para me consumir?
9 Lembra-te, pois, de que do barro me
formaste; e queres fazer-me tornar ao pó?
10 Não me vazaste como leite, e não me
coalhaste como queijo?
11 De pele e carne me vestiste, e de
ossos e nervos me teceste.
12 Vida e misericórdia me tens
concedido, e a tua providência me tem conservado o espírito.
13 Contudo ocultaste estas coisas no
teu coração; bem sei que isso foi o teu desígnio.
14 Se eu pecar, tu me observas, e da
minha iniquidade não me absolverás.
15 Se for ímpio, ai de mim! Se for
justo, não poderei levantar a minha cabeça, estando farto de ignomínia, e de
contemplar a minha miséria.
16 Se a minha cabeça se exaltar, tu me
caças como a um leão feroz; e de novo fazes maravilhas contra mim.
17 Tu renovas contra mim as tuas
testemunhas, e multiplicas contra mim a tua ira; reveses e combate estão
comigo.
18 Por que, pois, me tiraste da madre?
Ah! se então tivera expirado, e olhos nenhuns me vissem!
19 Então fora como se nunca houvera
sido; e da madre teria sido levado para a sepultura.
20 Não são poucos os meus dias? Cessa,
pois, e deixa-me, para que por um pouco eu tome alento;
21 antes que me vá para o lugar de que
não voltarei, para a terra da escuridão e das densas trevas,
22 terra escuríssima, como a própria
escuridão, terra da sombra trevosa e do caos, e onde a própria luz é como a
escuridão.” (Jó 10)
Nenhum comentário:
Postar um comentário